FONTE: http://www.olharvital.ufrj.br/2006/index.php?id_edicao=129&codigo=14
A trajetória da saúde dos negros no Brasil
Marcello Henrique Corrêa
Depois de ir um pouco mais profundo na história da criação da
Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia em 1808 até os primórdios da
criação da Universidade do Brasil, a série de reportagens “Medicina 200
anos” traz a reflexão sobre a saúde dos escravos e africanos durante o
período de instalação da corte portuguesa no Brasil, considerado um
forte impacto para a população brasileira por diversos especialistas.
Para entender melhor o assunto, Marcelo Ferreira de Assis, mestre
em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social
(PPGHIS), do departamento de História da UFRJ, apresentou o trabalho que
vem desenvolvendo em seu doutorado sobre o impacto da transferência da
família real para o Brasil na saúde dos africanos.
O estudo de Marcelo Ferreira foi feito a partir da análise de inventários
pós-morten
dos senhores de escravos, que revelavam que cerca de 16% dos “bens”
(os escravos) tinham alguma doença ou mal. Esses dados foram recolhidos
entre os anos de 1750 e 1850, acumulando cerca de 100 mil registros.
O tráfico de escravos
Segundo Marcelo Ferreira, os movimentos migratórios estão
relacionados ao perigo de crises epidêmicas. “Uma população
absolutamente aberta à migração é extremamente sujeita a tempestuosos
surtos epidêmicos de bactérias distintas de seu ambiente natural”,
avalia.
De acordo com o pesquisador, em 1830, quando o tráfico de escravos
foi proibido, o impacto desses males diminuiu sobre a população,
apesar de não cessar. As análises indicam que a alta nos preços dos
escravos foi um fator importante, que incentivou uma preocupação maior
com as ‘mercadorias’.
O historiador considera o período compreendido entre 1810 e 1830
fundamental para a análise da saúde dos escravos e da população como um
todo. O que se percebe é um aumento excessivo na entrada do número de
escravos entre esse período, o que gerou seus impactos. “Isso vai
gerar, por exemplo, mudanças radicais em termos de tipos de doenças,
tipos de doenças que matam, que aparecem nos inventários principalmente
a partir de 1810, quando a entrada de escravos africanos aumenta
significativamente”, observa o professor.
Por outro lado, o excesso demográfico gerado por esse movimento
migratório provocou uma absorção na ainda rudimentar área da saúde.
Como o
Olhar Vital já abordou na edição de
março,
os barbeiros eram em sua maioria negros e desempenhavam importante
papel na sociedade. “Os barbeiros estavam espalhados pela cidade,
prestando um serviço fundamental, aumentando a sobrevida das pessoas
(em dois anos, o que era muito)”, avalia Marcelo Ferreira.
Os miasmas da cidade
O mestre em História ressalta que é evidente que o maior impacto
sobre os escravos, bem como sobre a população mais pobre, é relacionado
com as condições sanitárias e de profilaxia. Para ele, a própria
iniciativa de criar Escolas Médicas no Brasil tem uma relação direta
com a urgência que a situação da cidade pedia. O professor citou um
exemplo de como as pessoas conviviam com o cheiro de corpos em
decomposição, que eram enterrados em igrejas.
A saúde contemporânea
Para Diana Maul de Carvalho, professora da Faculdade de Medicina
da UFRJ, é possível estabelecer uma relação da exclusão da população
escrava com o acesso minoritário da população negra aos serviços de
saúde hoje. “O que Marcelo mostra em seus dados é uma situação pior de
saúde da população escrava em relação à população não-escrava. Isso
certamente corresponde às taxas maiores de doenças e de morte nas
populações de origem africana identificável hoje”, comenta.
A professora ressalta a relação do negro com a Escola Médica, não
só no acesso aos serviços de saúde, mas também de educação.
Aparentemente, a Faculdade de Medicina passa por um movimento de
‘embranquecimento’ de seus alunos. “Quando pegamos os livros de registro
de alunos do início do século XIX, há muitas pessoas nascidas na
África, cujas cores de peles não sabemos. Muitos historiadores acham
que, na sua maioria, são negros, nascidos na África, mas isso não pode
ser confirmado”, analisa Maul.
Para a professora, o fato exige um estudo profundo, que
identifique as razões dessa aparente tendência. Apesar disso, uma
análise rápida de três momentos da Faculdade sugere que a hipótese faz
sentido. “Em 1942, havia 12 negros. Na turma em que me formei, 1970, só
havia quatro, dois estrangeiros. Hoje, se contarmos, vai ser difícil
somar cinco”, conta Diana Maul.
A exposição de Marcelo Ferreira de Assis ocorreu no seminário
“Reflexões sobre as práticas e saberes médicos no Brasil: da Escola de
Anatomia, Medicina e Cirurgia à Faculdade de Medicina da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1808-2008)“, que ocorreu hoje, 5 de junho,
no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. O evento faz parte das
comemorações dos 200 anos da Faculdade de Medicina.
Em julho, o leitor continua acompanhando os detalhes da trajetória do ensino médico no Brasil, no
Olhar Vital.